Justiça passada a limpo...

"Tem que se repensar o sigilo processual"

Paulo Nascimento
Especial para O Poti
paulonascimento.rn@dabr.com.br


Fábio Cortez/DN/D.A Press
Comedido nas declarações, mas firme nos posicionamentos, o advogado e ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado comentou vários dos temas e problemas discutidos recentemente dentro e fora do âmbito do judiciário. Com uma carreira de 43 anos no cargo de magistrado, passando por tribunais eleitorais, federais e criminais, assim como inúmeros outros setores do poder judiciário, o bacharel formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e natural de São José de Campestre, no Agreste Potiguar, afirma ser defensor da transparência, excluindo o uso desenfreado do dispositivo de sigilo processual. Filho mais velho do casal João Batista Delgado e Neuza Barbosa, criado em Santo Antônio do Salto da Onça, José Augusto ainda defende um aperfeiçoamento na democracia brasileira, que vem sendo feito pelos processos de investigação e descobrimento de ilícitos, segundo ele. Confira a entrevista concecida pelo advogado a O Poti/Diário de Natal:Não só o Tribunal de Justiça do RN como vários outros tribunais do país, por exemplo São Paulo e Tocantins, passam por investigações em virtude de suspeitas de crimes.

Qual a sua avaliação deste momento atribulado no poder judiciário?
O que posso perceber é a busca de um aprimoramento para execução do princípio da moralidade de modo absoluto no cumprimento das decisões judiciais. É algo simples, mas que diz tudo a respeito do momento. É uma evolução.

A aparição de problemas e crimes dentro dos tribunais, como no caso dos desvios de precatórios aqui e no Tocantins e os supersalários em São Paulo não mancham a imagem de respeito que a sociedade tem do poder judiciário?
O surgimento do problema em si já é algo para ser pesquisado, investigado e que afeta a credibilidade do poder judiciário, não se pode negar. Agora o que tem de se pensar e examinar é de que a punição dos que forem encontrados em culpa após o devido processo legal éalgo positivo.

O judiciário sai fortalecido deste momento?
Com certeza. Sai muito fortalecido, principalmente pela transparência e pela maneira com que os fatos estão sendo apurados, com rigor.

Os processos de investigação estão sendo bem conduzidos?
Creio que sim. Estão sendo conduzidos respeitando a dignidade humana, o devido processo legal, o direito de defesa na sua forma ampla. Tudo isto tem que ser respeitado, partindo do fato em que, em princípio, há presunção de inocência. Só pode haver condenação se existir prova real de que os ilícitos foram praticados.

O senhor, como juiz por várias décadas e ministro do STJ por mais de 15 anos, pode contar como é para um magistrado julgar outro juiz? É duro cortar na própria carne?
Não se pode deixar de afirmar que é duro. Especialmente pela revolta que surge no julgador por ver alguém, depois de devidamente comprovado, ver alguém manchar o nome do poder judiciário. Mas é necessário. O Superior Tribunal de Justiça, na fase em que lá permaneci, por quase 17anos, afastou definitivamente três ministros. E tem afastado outros desembargadores e conselheiros de tribunais de contas até que sejam apuradas as faltas a que foram imputados.

O Conselho Nacional de Justiça vem cumprindo seu papel enquanto órgão administrativo dentro do judiciário?
O CNJ é profundamente essencial para o aprimoramento do estado democrático de direito. E, consequentemente, para disciplinar, em campo administrativo, a atuação do poder judiciário com base nos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. São os princípios do artigo 37 da Constituição Federal.

O momento de aparição de escândalos pelo qual passam não só judiciário, mas também o legislativo e o executivo mostra que o Brasil ainda está aperfeiçoando a sua democracia desde a Constituição Federal de 1988?
A Constituição de 1988 é um marco importante para o aprimoramento das instituições democráticas no Brasil. Especialmente para que elas pratiquem seus atos administrativos e judiciais com base nos princípios da moralidade e da legalidade. O século XXI é destinado aos direitos do cidadão e é isto que está sendo buscado por todos estes movimentos de apuração e condenação dos desvios praticados por agentes públicos.

Reclama-se muito da morosidade do judiciário.

Este é outro ponto a ser aprimorado dentro dos tribunais?
A demora na entrega da prestação jurisdicional é uma realidade. Mas esta realidade está sendo combatida, especialmente a partir de 2005, com a Emenda Constitucional número 45, que considera como direito fundamental do cidadão a razoável duração do processo. Também tem contribuido para diminuir essa demora a evolução da internet, da ciência informática, destacando-se o e-processe (formato de processo eletrônico), que hoje é uma realidade em todo o país. O que deve ficar consagrado é que, hoje, a razoável duração do processo é direito fundamental. A demora no processo pode ensejar responsabilidade civil do Estado e, consequentemente, do juiz que para tanto contribuiu.

Os registros de demora, desde o mais simples processo até o mais complexo, prejudicam a apuração e o julgamento dos processos?
Ela gera uma descrença. Gera inquietação. A espera dói, para usar uma expressão poética. A espera também cansa e contribui para que não seja estabelecida a paz entre as partes. Todo processo na justiça decorre de um conflito, que quanto mais cedo for solucionado melhor para todos.

Em recentes julgamentos de peso no Supremo Tribunal Federal, como a questão das cotas raciais para universidades, alguns ministros falaram em não se levar em conta as pressões sociais durante as decisões. O judiciário tem que se privar do clamor social?
A consciência coletiva é influenciada pela mídia, pelos fatos sociais, pelas necessidades vividas. Enquanto o juiz deve se apegar aos ditames da lei, sua interpretação e a prova real dos fatos que estão sendo examinados. Ele não pode ignorar o movimento das massas, mas não pode aceitar absolutamente como influência para suas decisões. Há uma distância muitogrande entre o sentimento da coletividade e o que está nos autos do processo. O juiz deve julgar com base nas provas que lhes forem apresentadas.

O dispositivo do segredo de justiça vem sendo bastante discutido entre vários setores da sociedade. Alguns juristas já chegaram até a se posicionarem contra o uso dele. De fato, o segredo de justiça é bem utilizado?
A princípio sou contra o sigilo processual. Só aceitamos no limite de que é necessário para descobrir atos ilícitos, especialmente, após a Lei de Acesso a Informações Públicas, de novembro do ano passado. Tem que se repensar o sigilo processual, com contornos que não prejudiquem o direito à transparência e à dignidade humana de se defender. O sigilo só pode ser admitido em casos expecionais.

Em casos como as investigações da participação dos desembargadores no desvio de verba no TJ e também no Caso Cachoeira, em que vem aparecendo nomes de, por exemplo, ministros e governadores, é válido existir o sigilo processual para evitar julgamentos públicos de pessoas que futuramente possam ser inocentadas?
Volto a insistir que só se deve utilizar o sigilo quando for absolutamente necessário. Da mesma maneira que o cidadão tem de ter protegida a sua dignidade humana, ele não pode se negar a ser investigado. O homem público não pode se negar, ele é um escravo da cidadania. Se nada existe contra ele, quanto mais for investigado melhor. Eu sei que dói, por exemplo, a imprensa noticiar a investigação. Mas se não temo, se não devo, faço a prova de que não devo. Ou então, façam a prova de que devo. Se um homem público é acusado de ter recebido uma determinada vantagem de forma ilícita, por exemplo, um imóvel, é tão fácil dele provar que comprou aquele bem. Tem a fatura, o cheque, o depósito, tem o Imposto de Renda. É muito fácil se provar a honestidade. E o homem público tem a obrigação, caso seja convocado a tanto. Quando vai tomar posse, o juiz faz a declaração de seus bens. Quando um candidato inscreve-se nas eleições a primeira coisa que apresenta é a declaração de seus bens, bem antes de tomar posse. Veja bem que é muito sério. Todo integrante do judiciário, executivo ou legislativo é obrigado a apresentar declaração de bens quando toma posse, assim como qualquer outro funcionário público. E hoje, todos os anos, ele é obrigado a apresentar a evolução do seu patrimônio. Não é nada difícil, é a lei. Como eu digo, o homem público é um escravo da cidadania e tem que prestar conta de seus atos.

O exame das contas apresentadas pelos integrantes dos três poderes é bem feito pelos órgãos fiscalizadores, como os tribunais de contas?
Há uma tendência de melhorar cada vez mais esta fiscalização. Ou seja, não é bem fiscalizado. A busca pela melhoria está sendo bem vista pelos olhos da sociedade. Quanto maior for a fiscalização, melhor. É simples.

A relação do legislativo com o judiciário, a troca de informações entre os poderes, é de bom grado para os dois lados?
Quanto mais transparente e colaboradora for essa relação para descobrir se ilícitos foram praticados ou não, é melhor para a sociedade. Devemos lembrar que alguém só pode ser julgado em prova real, verdadeira, acontecida. Por fato existente. Não se pode condenar ninguém por presunção, ser branco, amarelo ou francês. Ou até por não gostar do Flamengo (risos). Ninguém pode condenar alguém por isso. Se a natureza lhe dá uma qualidade, a qualidade tem que ser respeitada. Então, se cometo um delito só posso ser condenado se houver a prova de que realmente o cometi. Não se pode haver condenação por emoção, influência de imprensa ou de qualquer outro ator social. Incluem-se aí as passeatas, os movimentos nas redes sociais. As manifestações fazem parte do estado democrático de direito, mas não podem pressionar uma instituição como o judiciário.

Enquanto foi magistrado, o senhor chegou a sofrer pressões nos bastidores?
Durante os 43 anos em que exerci a magistratura o fiz com a absoluta liberdade. Nunca me senti pressionado, quer por autoridades, quer por qualquer cidadão, advogados ou instituição. Veja bem que fui juiz na época da ditadura, já que comecei na magistratura em 1965. Pedidos foram feitos. Quando normais e justos, atendidos. Quando anormais e não justos, não atendidos. O cidadão tem o direito de pedir. Vale salientar que tais pedidos eram feitos de acordo com a lei. Chegava o advogado no meu gabinete, fazia seu pedido, por petição. Caso fosse justo era atendido. Nunca recebi isto como forma de pressão, considerava normal, já que é um direito do cidadão. Foram mais de 40 anos na magistratura, só não fui juiz militar, de resto eu fui tudo: juiz do trabalho, eleitoral, corregedor, presidente de tribunal, ministro eleitoral.

Durante os 43 anos de magistratura, qual foi o momento mais difícil ou a decisão mais complicada?
Momentos complicados aconteciam com os processos de desapropriação. São muito demorados, de solução complicada. Muito me doeu um em que a parte estava morando debaixo de uma ponte em São Paulo que foi construída em um terreno que era da família desta parte. Já se passavam 20 anos e ela não tinha recebido indenização. Desapropriaram o terreno, botaram a casa abaixo e a ponte foi construída, mas o Estado de São Paulo não pagou nada. Eu julgei pelo pagamento, mas não sei se foi pago. Lembrava o nome da ponte, até um certo tempo. É um caso muito triste.

DN Oline

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