A INGERÊNCIA POLÍTICA E A MERITOCRACIA INVERTIDA NA POLÍCIA...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014


Por Ivênio Hermes * - O grau de isenção de uma instituição policial pode ser medido por sua capacidade de agir sem interferências em suas atribuições precípuas, ou seja, sem sofrer perniciosas influências externas e nem pressões superiores para adequar suas ações ao desejo de pessoas estranhas ou que não tenham verdadeiro compromisso com a coisa pública.

Dentre as polícias que mais sofrem a ingerência externa e/ou interna, não que as outras não sofram, cada uma em um certo grau, é a Polícia Militar. Esse aporte não advém de sua estrutura militarizada, mas do peso do comportamento militar dentro das fileiras internas, que suscetibiliza o órgão à essas ações.

Nos órgãos estaduais de segurança pública as polícias estão na base da atividade executiva, numa posição inferiorizada que as coloca como subalternas e, muitas vezes, até subservientes. E nesse caso específico, a ausência de autonomia da PM, subordinada à SESED e por sua vez ao Poder Executivo maior, se concretiza por serem “militares” de fato, e terem sua corporação, que é policial e não militar, tida como força auxiliar e ainda que se utilizam das leis do Direito Militar com fundamento de sua disciplina.

Na trilha deixada pelo legislador quanto aos direitos dos policiais militares está a letra da Carta Magna que nega alguns direitos básicos dos trabalhadores das carreiras militares.

“Ao militar são proibidas a sindicalização e a greve.” Constituição Federal Art. 142. §3º inciso IV

Sem aprofundar demasiado o assunto do direito à greve, destacamos o fato apenas para demonstrar a força exacerbada que o chefe do executivo estadual exerce sobre os policiais militares, algo que não ocorre com os policiais civis. E ainda, ao se aplicar ao policial militar o título de “militar”, se estabelece uma celeuma entre os entendimentos sobre a carreira policial. O professor Antônio Álvares da Silva, da Universidade de Minas Gerais, em sua manifestação favorável à liberdade dos policiais militares de se manifestarem, afirmou:

“Logo, o militar deve ter naturalmente todos os instrumentos jurídicos para defender seus direitos e participar do jogo democrático da divisão de riquezas, que ele também ajuda a construir.” (SILVA, 2010)

Ao retirar do PM esse direito que é outorgado aos seus colegas policiais de outros órgãos, o legislador inusitadamente agiu com discriminação, pois eles pertencem à mesma estrutura estadual de polícia, e o pior, isso garantiu ao poder executivo uma tremenda força para agir com ingerência dentro e fora dos muros dos quartéis.

Como resultado mais comum temos:

  • Escalas de trabalho com horas excessivas sem recebimento de horas extras, recebem alimentação de qualidade questionável, suas diárias são postergadas de acordo com a conveniência dos gestores interno e externos da corporação, e isso quando as recebem;


  • Impedimento do exercício do direito de se manifestarem livremente, o que os torna alvos fáceis de punições e sanções administrativa muitas vezes ilegais, com casos conhecidos de pessoas punidas por suas opiniões em redes sociais, que divergiram do oficialato superior ou que iam contra o senso comum equivocado de alguns gestores, configurando-se num caso clássico de cerceamento de liberdade de expressão;


  • Removidos “contra voluntae” (contra a vontade) de suas localidades (de trabalho, muitas vezes distantes de suas residências) e postos ao “bel prazer” da vontade de seus superiores, sendo essa vontade provocada por pedidos dessa ou daquela figura pública, empresários, pessoas influentes, e por aí a lista;


  • Dificuldade de obtenção de reconhecimento adequado por seu trabalho e esforço, a não ser, e nem sempre acontece, o velho “tapinha nas costas” acompanhado de um “bom trabalho”.


A ingerência política chega ao ponto de provocar um dos flagelos mais desestimulantes do serviço policial conhecido como inversão da meritocracia ou meritocracia invertida, beneficiando quem não merece e prejudicando quem se esforça.

No Rio Grande do Norte, em recentes relatos, uma equipe inteira foi retirada de uma cidade onde estava realizando um bom trabalho e transferida para outra a pedido de um político local influente. Em outra situação, um oficial foi supostamente punido por ter se manifestado à favor da desmilitarização e em outro caso, mais um oficial foi mudado de local de trabalho apenas porque alguém de fora da corporação o quis de volta àquela localidade de onde ele já tinha sido transferido, sob a desculpa de que ele tinha enfrentado desafios e os solucionado.

Meritocracia Invertida


A meritocracia invertida causa justamente isso, promove o mau profissional da segurança pública quando o protege. Do fluxograma de reconhecimento profissional acima, pode ser obtida uma visão simplificada daquilo que ocorre.

O bom profissional enfrenta as piores condições de progresso, e não estou querendo dizer que o desafio deva ser repassado ao mau profissional, apenas se faz necessário enfatizar a diferença dada a ambos. O caminho até o reconhecimento é mais longo e difícil. Há um senso equivocado de gerenciamento de pessoas, onde a oferta de novos e mais complexos desafios é feita àquele que todos sabem que irá solucionar o problema, sendo que a repetição dessas situações sobrecarrega o policial, tornando-o vulnerável pelo excesso de trabalho. Já o profissional errático, com o qual não se pode contar sempre, ao invés de ser punido, é recompensado com posições onde ele não é muito solicitado, geralmente facilitando sua ascensão profissional ou seu desapego pelo serviço público.

E se isso ocorre com oficiais que estão de uma forma ou de outra melhor protegidos pela patente, a situação se agrava para os praças, que estão mais ainda na base da hierarquia.

Outra demonstração da meritocracia invertida e da ingerência política e de terceiros é o uso do aparato policial militar em desvio de função para substituir policiais civis e agentes penitenciários estaduais em caso de falta de efetivo e greves, provocando a desunião de agentes da lei que deveriam trabalhar em conjunto.

E num exemplo derradeiro de forças estranhas agirem na Polícia Militar do Rio Grande do Norte, levando os gestores a tomarem atitudes contra os princípios operacionais e as determinações de instâncias superiores, vejamos o que está acontecendo nos municípios de São Tomé e Lagoa de Velhos.


O gráfico acima mostra que São Tomé possui população estimada de 11.187 mil habitantes (dados do IBGE), com o registro de 2 assassinatos em 2013 e pelo menos três atrativos para criminosos: caixas eletrônicos, agência lotérica e agência dos Correios. Lagoa de Velhos tem bem menos, apenas 2.759 mil habitantes, não houve registro de homicídios em 2013 e nem possui atrativos para o crime como os de São Tomé.

Há poucas semanas, 2 dos 9 policiais militares que compõem o policiamento em São Tomé foram transferidos para Lagoa de Velhos que possuía 3, reconfigurando a distribuição de policiais entre os dois municípios com 7 para São Tomé e 5 para Lagoa dos Velhos. Embora os números pareçam equilibrados, a demanda de São Tomé é maior em função dos fatores descritos no gráfico, com destaque para o reforço de policiamento mais próximo que fica em São Paulo do Potengi, distando cerca de 41km e uma média de 39 minutos para ser percorrida. Lagoa de Velhos tinha a equipe de São Tomé como reforço, apenas 27 km e 31 minutos de percurso, mas com o número redefinido de policiais deverá provocar sobrecarga nas escalas, fragilizando assim ambas as cidades.

Não é esperado que um gestor tenha optado por redefinir a lotação dos policiais desses municípios, sem ter pelo menos considerado os dados adequados para um bom planejamento operacional. Inclusive existe um estudo do Tenente Policial Militar Andrey Brutus, que visa uma redistribuição emergencial de policiais em caso de efetivo deficitário, que é o caso do RN, onde de imediato mais de 300 policiais formados sairiam do serviço administrativo e reforçariam a atividade fim, ou seja, o policiamento ostensivo. Mas a inversão da meritocracia faz com que estudos assim acabem esquecidos pela burocracia do Estado e seus autores nem sequer recebem o devido reconhecimento.

Enquanto esse gestor deve ter sofrido ingerência política e/ou interferência externa, seus comandados recebem uma recompensa amarga pelos seus esforços: a fragilização de seu trabalho e a sobrecarga de serviço.

A estrutura de todas as polícias, com ênfase na Polícia Militar, deveria ser reestudada para que essas duas forças negativas deixem de existir, ou sejam reduzidas a um mínimo aceitável.

Alguns gestores policiais precisam sair do século passado nesse quesito, avançando para o futuro e rumo à uma polícia isenta de interferências externas prejudiciais e de ingerência política, fatores que, no mínimo, ferem o princípio da eficiência, prejudicando a segurança pública potiguar, já tão desgastada e sem credibilidade.

* Ivênio Hermes é Escritor Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Ganhador de prêmio literário Tancredo Neves. Colaborador e Associado Pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Consultor de Segurança Pública da OAB/RN Mossoró. Pesquisador nas áreas de Criminologia, Violência, Direitos Humanos, Direito e Ensino Policial.
Postagem Anterior Próxima Postagem