>>> DIÁRIO DE NATAL PUBLICA MATÉRIA RELACIONADA AO SEGUNDO TRABALHO DO POLICIAL “O BICO”

Policiais fazem "bico" como seguranças quando deveriam descansar ou se divertir. Saúde e relações pessoais são sacrificadas

Jornada dupla e desumana

Embora o Estatuto da Polícia Militar do RN especifique que os profissionais devam se dedicar integralmente à corporação, quase todo policial conhece um colega de trabalho que atue em outro local nos horários e dias de folga, sobretudo fazendo segurança particular.

É o caso de André, um PM que teve o nome trocado para não ser identificado e em 10 anos de vida dedicada à segurança pública, já passou sete deles em longas jornadas de trabalho, divididas entre o trabalho fardado e a vigilância privada.

Atualmente, André trabalha como segurança em um supermercado na Zona Norte de Natal, onde se reveza com mais três soldados, coordenados por um cabo que fez a "ponte" com a empresa. Lá, o policial dedica cerca de 160 horas por mês, que somam-se às 200 horas, aproximadamente, na PM. "Vivo assim para dar uma vida melhor à minha esposa e minha filha", justificou, afirmando que o salário que recebe do estado é baixo, embora reconheça que tem parte dele comprometido em um empréstimo.

O salário-base do soldado PM potiguar gira em torno de R$ 1,6 mil líquidos, além de um aumento de 5% a cada cinco anos. André recebe R$ 600 pelo "bico".

"Me ajuda porque minha esposa é auxiliar de serviços gerais e recebe um salário mínimo".

O policial poderia, ainda, receber uma bolsa-formação, com a qual, em troca de se aperfeiçoar com cursos de extensão, receberia R$ 400 mensais durante um ano, podendo prorrogar. Mas é impedido de se matricular porque já esteve preso administrativamente.

Burocracia

"O 'bico' é uma realidade que envolve a maioria dos soldados", afirmou o PM. Segundo André, há possibilidade de ganhar mais no serviço oficial fazendo horas extras, mas há também uma grande barreira. "Temos que passar horas, até madrugar, para pegar uma ficha e registrar esse tempo de trabalho a mais. Se funcionasse, eu não faria bico, porque daria tranquilamente para tirar até R$ 500 a mais". Os salários de André pagam aluguel, escola, um consórcio de uma motocicleta, além de plano de saúde parao filho, de seis anos, "e lazer, é claro".

Dentre as consequências de tantas horas trabalhadas sob tensão, André diz que já sofre de problemas no joelho esquerdo, aumento no tamanho do coração e revela, ainda, que precisa tomar remédio contra insônia. "Eu nem sou dos piores casos, porque pelo menos procuro médico e tomo alguma coisa. Mas a maioria dos meus colegas não vai atrás de ajuda, acha que é besteira". O policial chegou a dizer à reportagem que acredita que viverá pouco, mas "leva na flauta".

"O trabalho nas ruas é extremamente estressante. Pode acreditar que a gente começa o serviço pedindo para terminar", desabafou André. "Em casa, acabei me tornando uma pessoa estúpida, sem paciência".

Trabalho extra é proibido

A atividade paralela ou "bico" é geralmente relacionada à segurança particular e, por isso, o assunto causa receio nos profissionais. A reportagem procurou outros cinco PMs com dupla jornada, mas nenhum deles quis ser entrevistado, chegando a temer até os grampos telefônicos.

O coronel Francisco Araújo, comandante geral da PM no estado, informou que, dependendo do que seja, é possível que os policiais exerçam uma segunda atividade, contanto que não fique caracterizado vínculo empregatício, exceto se o trabalho for como professor ou médico.

"O policial não pode atrapalhar sua carga horária nem comprometer o serviço militar. E caso ele trabalhe em outro lugar com a farda, será responsabilizado disciplinarmente, conforme prevê o nosso estatuto, e responderá administrativamente na Corregedoria", explicou.

Na Polícia Civil, segundo explicou o delegado geral do estado, Elias Nobre, é preciso dedicação exclusiva. Para Djair Oliveira, vice-presidente do Sindicato dos Policiais Civil do RN (Sinpol/RN), o que leva alguns profissionais a procurar o "bico" é "sem dúvida, a baixa remuneração".

Contudo, Djair pondera que há poucos colegas que atuam também como segurança particular, sobretudo pelos aumentos salariais conquistados pela categoria. "Em São Paulo e no Rio de Janeiro, a situação é bem pior", disse o agente. "Aqui, muitos que tinham 'bico' deixaram e estão se dedicando, estudando, buscando melhorias". Para o vice-presidente, o ideal seria ganhar suficientemente bem para não precisar se submeter a uma vida de renúncia e cansaço, atrapalhando o rendimento como policial.

Decisão no DF

Os PMs do Distrito Federal foram autorizados a prestar serviços particulares nas folgas, conforme portaria de 12 de abril, mas a medida foi modificada um dia depois. O Comando Geral havia permitido exercer atividade na iniciativa privada, desde que não comprometesse sua escala de trabalho, contudo voltou atrás, após a repercussão social negativa e as pressões por parte de entidades como o Ministério Público e o Sindicato dos Vigilantes. Ficou estabelecido que não serão permitidas atividades extras no âmbito da vigilância privada.

Falsa sensação de liberdade

Segundo Camila Martins, psicóloga organizacional e do trabalho. "O trabalho por 24 horas seguidas é a solicitação máxima da capacidade do empregado, daí não é sem propósito que ele tenha a folga de dois ou três dias, por exemplo", explicou.

Para ela, as pessoas estão adoecendo mais pelo índice de estresse ocupacional visto na sociedade moderna. "No caso dos policiais, o problema torna-se ainda maior, devido à própria natureza do trabalho de segurança, que demanda vigilância e alerta constantes", explicou Camila.

A psicóloga também explicou que os policiais se deparam constantemente com situações de tomada de decisões e soluções rápidas de problemas sérios. "Ninguém os aciona porque tem um jardim bonito e sim por um conflito", raciocina.

Para ela, trabalhar à noite sem o devido descanso é ainda pior. "Quase ninguém se adapta porque o metabolismo orgânico foi feito para produzir durante o dia e descansar quando escurece, é uma questão química mesmo", continuou Camila, acrescentando que muitos profissionais acabam fazendo uso de substâncias psico-estimulantes, como cafeína, chás e energéticos.

Outro agravante para os policias, na opinião da especialista, é o fato de cultivarem a imagem do "forte e inabalável" e terem dificuldade de pedir ajuda, ainda mais a um psicólogo. "Daí surgem os mais variados problemas, como depressão, síndrome do pânico e a oscilação entre momentos de muita euforia e de tristeza", diz.

Estímulo

Camila acredita que, ao invés de buscar um segundo emprego, os policiais deveriam aproveitar o tempo de folga para descansar o corpo e a mente, mas, para isso, a corporação deveria oferecer um espaço de atividades que proporcionasse tal apoio.

"A carreira de policial não é fácil, pois trata-se de uma mudança de vida. Mesmo à paisana, deve agir, conforme jurou, e isso já é um peso", justificou a psicóloga. "A saúde que se perde com longas e estressantes horas de trabalho nunca mais é recuperada. A curto prazo se percebe pouca diferença, mas a médio e longo prazo problemas irreversíveis vêm à tona", avaliou Camila.

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